Gisela Casimiro
o poema é um campo de batalha
O poema é um campo de batalha, é um corvo. É a senhora que pede esmola sentada à beira das escadas rolantes na estação de comboios e que eu ignoro de cada vez que por ela passo. O poema é a nobreza que essa senhora terá a mais do que eu, é a esmola pura que eu não mereço, sequer, pedir-lhe. O poema é a árvore do cimo da qual eu aprendo que o meu coração tem fundo. Em algumas manhãs, talvez por os anjos se demorarem mais à minha volta, vejo-a da janela do meu quarto e sei: o poema é este comover contínuo. O poema é o caminho que ainda me falta percorrer para o amor que me foi destinado e que se apresenta sob a forma de imagens esbatidas, difusas de quem sei que espera por mim nalgum país distante e que se distingue do que eu habito agora por não bastar um abrir ou fechar de olhos para lá chegar. O poema é o verbo salvar. O poema é a criança que no metro toca acordeão com um cachorro ao ombro, é um quadro. É o pé da minha avó, amputado, é uma nuvem. O poema é o meu silêncio para com o mundo. O poema é como sei que Deus é o ser mais solitário do Universo; é a minha oração, a minha forma desajeitada de fazer-lhe companhia.
Gisela Casimiro
Erosão, Editora Urutau, 2018