Álvaro de Campos · Notas para a recordação do meu mestre Caeiro

(…)

O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o António Mora é um pagão, eu sou um pagão; o próprio Fernando Pessoa seria um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro. Mas o Ricardo Reis é um pagão por carácter, o António Mora é um pagão por inteligência, eu sou um pagão por revolta, isto é, por temperamento. Em Caeiro não havia explicação para o paganismo; havia consubstanciação.

Vou definir isto da maneira em que se definem as coisas indefiníveis — pela cobardia do exemplo. Uma das coisas que mais nitidamente nos sacodem na comparação de nós com os gregos é a ausência de conceito de infinito, a repugnância de infinito, entre os gregos. Ora o meu mestre Caeiro tinha lá mesmo esse mesmo conceito. Vou contar, creio que com grande exactidão, a conversa assombrosa em que mo revelou.

Referia-me ele, aliás desenvolvendo o que diz num dos poemas de O Guardador de Rebanhos, que não sei quem lhe tinha chamado em tempos «poeta materialista». Sem achar a frase justa, porque o meu mestre Caeiro não é definível com qualquer frase justa, disse-lhe, contudo, que não era absurda de todo a atribuição. E expliquei-lhe, mais ou menos bem, o que é o materialismo clássico. Caeiro ouviu-me com uma atenção de cara dolorosa, e depois disse-me bruscamente:

«Mas isso o que é é muito estúpido. Isso é uma coisa de padres sem religião e portanto sem desculpa nenhuma.»

Fiquei atónito, e apontei-lhe várias semelhanças entre o materialismo e a doutrina dele, salva a poesia desta última. Caeiro protestou.

«Mas isso a que você chama poesia é que é tudo. Nem é poesia: é ver. Essa gente materialista é cega. Você diz que eles dizem que o espaço é infinito. Onde é que eles viram isso no espaço?»

E eu, desnorteado. «Mas você não concebe o espaço como infinito? Você não pode conceber o espaço como infinito?»

«Não concebo nada como infinito. Como é que eu hei de conceber qualquer coisa como infinito?»

«Homem», disse eu, «suponha um espaço. Para além desse espaço há mais espaço, para além desse mais, e depois mais, e mais, e mais... Não acaba...»

«Porquê?» disse o meu mestre Caeiro.

Fiquei num terramoto mental. «Suponha que acaba», gritei. «O que há depois?»

«Se acaba, depois não há nada», respondeu.

 Este género de argumentação, cumulativamente infantil e feminina, e portanto irresponsável, atou-me o cérebro durante uns momentos.

 «Mas você concebe isso?» deixei cair por fim.

 «Se concebo o quê? Uma coisa ter limites? Pudera! O que não tem limites não existe. Existir é haver outra coisa qualquer, e portanto cada coisa ser limitada. O que é que custa conceber que uma coisa é uma coisa, e não está sempre a ser uma outra coisa que está mais adiante?»

Nessa altura senti carnalmente que estava discutindo, não com outro homem, mas com outro universo. Fiz uma última tentativa, um desvio que me obriguei a sentir legítimo.

«Olhe, Caeiro... Considere os números... Onde é que acabam os números? Tomemos qualquer número — 34, por exemplo. Para além dele temos 35, 36, 37, 38, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja um número maior...»             «Mas isso são só números», protestou o meu mestre Caeiro.

E depois acrescentou, olhando-me com uma formidável infância:

«O que é o 34 na realidade?»

(…)

 

 

PESSOA, Fernando, Prosa Escolhida de Álvaro de Campos, edição Fernando Cabral Martins e Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, pp. 20-22.