João Luís Barreto Guimarães

Termos de utilização

Se vem à espera
leitor de que
nas linhas deste poema “os barcos de pesca
divisem uma vertigem de pedra”
“as telhas das casas irrompam
(em coágulos de carne)
numa indómita loucura” ou
“o espinho agudo do tempo arda fervorosamente
numa mudez de fantasma”
é meu dever informá-lo de que aqui
não vai
ser assim. Tal não vai acontecer. Aqui
as telhas das casas são
meras escamas molhadas (os barcos
à falta de oiro
regressam repletos de prata) o
tempo consome-se lento
como um sapato
ou a
paciência.

□ Confirme que leu e aceita os termos de utilização.


De Aberto todos os dias, Quetzal, 2023

 

 

Terms of Use     

If, reader,  
you’re expecting that  
in the lines of this poem “the fishing boats  
discern a giddiness of stone”  
“the roof tiles of houses burst  
(in clots of meat)  
in indomitable madness” or  
“the sharp thorn of time burns fervently  
in a ghostly silence”   
it is my duty to inform you that here  
it won’t  
be like that. Such things will not happen. Here    
the roof tiles of the houses are  
simply wet scales (the boats                
lacking gold  
return full of silver)   
time consumes itself slowly  
like a shoe  
or   
Patience.  

□ Please confirm that you have read this and accept the terms of use. 

 

Traduzido por Martin Earl para o Lisbon Revisited: dias de poesia

 


Aberto todos os dias

O mundo
aberto lá fora. Difícil cansar-me dele. O céu
a entrar pela janela. O músculo do homem comum.
As laranjeiras de Córdova. Brindar com
água da
chuva. Os peixes do Nilo urinando na
mesma água onde nadam. O vinho que fez
um estágio nas caves do Douro
e passou. A lua a quem eu uivo a cada noite
(em segredo). Um relâmpago à janela:
electrocardiograma
de Deus. A orgia
dos seixos na espuma. Um ministro que mentiu.
Cerejas no mês de Maio. Sardinhas
no mês
de Junho. Os pés que saem da areia ornados
com missangas de prata. Os enfermeiros
exaustos que saem de
mais um turno. A Vitória de Samotrácia aparecendo atrasada
perguntando quelle heure est-il? à estátua da
Vénus de Milo. Jesus Cristo
num
decote. A maldade de Putin. A carne
de um dióspiro. E o
ministro não se demite. Nem um
só dia desperdiçado. Estar à disposição do mundo. Como
quem ergue a verdade com a luva
da linguagem.

 

De Aberto todos os dias, Quetzal, 2023

 

 

Open every day    

The world  
open outside. It’s hard to tire of it. The sky  
coming through the window. The muscle of Everyman.  
The oranges of Cordova. Raising a toast  
with rain  
water. The fish of the Nile pissing in   
the same water they swim in. The wine   
that was aged in the cellars of the Douro  
and turned. The moon I howled at nightly  
(in secret). The lightening bolt at the window:  
electrocardiogram  
of God. The orgy  
of pebbles in the foam. A cabinet minister that lied.  
Cherries in the month of May. Sardines  
in the month  
of June. Feet that leave the beach adorned  
with small silver beads. The exhausted   
nurses finishing yet  
another shift. The Winged Victory of Samothrace arriving late  
asking the statue of Venus do Milo  
quelle heure est-il? Jesus dangling  
in a  
decolletage. Putin’s wickedness. The flesh  
of a persimmon. And the  
cabinet minister doesn’t resign. Not one   
day wasted. Being available to the world. Like  
one who lifts up truth in the glove  
of language.   

 

Traduzido por Martin Earl para o Lisbon Revisited: dias de poesia


A discussão

Preparar a discussão entre amantes desavindos
requer (antes de mais) que
se acertem
detalhes. Um exemplo: em que lugar
encetar a discussão. Qual dos dois grita primeiro. Quem
se exaltará depois. Por quanto tempo se fala e se
se pode
interromper. Se se fica pelo presente ou se
se pode ir ao passado. Se se vai lavrar a acta. Se
alguém pode assistir. Se cabe tudo numa hora ou se
se deixa para
depois. Acaso se
não couber (por ser vasta a desavença)
é essencial decidir aonde se vai jantar. Se
se pede carne ou peixe. Se se pode dar a provar. Se
se pede tinto ao copo ou
uma de branco para
dois. É imperioso saber (antes que tudo comece) em
casa de qual dos dois prossegue a discussão. Quem
tenta o primeiro beijo. Se se vai
fazer amor. Onde se fará amor e como
se fará o amor. Se o lençol chega para ambos. Se
ela cai para o lado dele. Porque ela tinha os pés frios.
Porque ele ressona e
a acordou. Se é mesmo para discutir (já
de cabeça perdida) é preciso perceber
(para início de conversa) qual se irá levantar pelo
frio da manhã para fazer
café para dois.

 

De Movimento, Quetzal, 2020

 

 

The argument   

To prepare the argument between quarrelsome lovers  
requires (first and foremost) that  
you get the details  
right. For example: the place  
where it started. Which of the two screams first. Who,  
after that, gets enraged. How long can you talk and   
is interrupting  
acceptable. If it stays in the now or if  
it dredges up the past. If the proceedings will be filed. If  
there can be witnesses. If everything fits into an hour or if  
it is to be continued  
later. If it  
doesn’t fit (due to the vastness of the fracas)  
it’s crucial to decide where to dine. If  
it will be meat or fish. If tasting the other’s dinner works, if   
you order red by the glass or  
a bottle of white for  
two. You must find out (before everything starts) in   
whose house the argument will continue. Who  
will attempt the first kiss. If they’ll  
make love. Where they’ll make it and how  
they’ll make it. If the single sheet is enough for two. If  
she collapses next to him. Because she had cold feet.  
Because he snores and   
woke her up. If there’s really something to fight about (heads    
already lost) you need to understand  
(for starters) who is going to get up in   
the cold of morning to make  
coffee for two.  

 

Traduzido por Martin Earl para o Lisbon Revisited: dias de poesia


Êxtase de Santa Teresa

Eu peço
imensa desculpa cardeal Federico Cornaro mas
cuido que Gian Lorenzo Bernini
o enganou. Se não o Mestre que explique
(como lhe aprouver melhor) a
face de gozo da Santa (o
corpo lançado para trás o
hallux semiflectido os olhos semicerrados) já nem
falo
desse anjo trespassando a seta em fogo
com o riso atrevido de um cupido consolado
se é isto o amor divino eu quero ser querubim
a menos que (Excelência:) Vossa
Excelência confesse que ordenou a obra assim
(o pecado mascarado pelos excessos do barroco
algo difícil de ver numa igreja calvinista)
nesse caso (Excelência:) não
sei qual julgar maior se o
lento gozo da Santa (largada a tal entrega) se
a nossa inveja pelo tempo que ela já leva daquilo
os lábios entreabertos de metafisico amor
preenchendo (Excelência:) o
espaço interior do vazio
prolongando (Excelência:) o grito
da
doce
dor.

 

De Mediterrâneo, Quetzal, 2016

 

 

The Ecstasy of St. Teresa 

I beg
your humble pardon cardinal Federico Cornaro but 
I believe Gian Lorenzo Bernini 
pulled your leg. If not the Master ought to explain 
(as it please Him) the 
Saint’s expression of pleasure (her 
body thrown backwards the 
Hallux partially reflected her eyes half closed) 
to say 
nothing of the angel thrusting the incendiary arrow 
with that cheeky smile of a contented cupid 
if this is divine love I want to be a cherubim 
unless of course (Excellence:) Your 
Excellence confesses that you commissioned the work this way 
(all this sin disguised in the old Baroque excesses 
is something quite uncommon to see in a Calvinist church) 
in such a case (Excellence:) I don’t 
know which to judge greater the 
measured ecstasy of the saint (released to such surrender) or 
our envy of how long she’s been full of it 
the lips faintly parted by metaphysical love 
filling (Excellence:) the 
inner space of an emptiness 
prolonging (Excellence:) the pain 
screaming 
so 
sweet. 

 

Traduzido por Calvin Olsen


«Pode ser Pepsi?»

a Bernardo Pinto de Almeida 

Gosto de ver
hieróglifos nas pegadas das gaivotas.
Não gosto que os feriados calhem ao
fim-de-semana. Gosto dos frescos de Pompeia
em dias de mais calor. Não gosto
nada que os gregos misturem água no vinho.
Prefiro os heróis sem nome ao
nome dos grandes heróis. Distingo a dor
dos que perdem da total perda de dor. Gosto
de sentir a música de volta à minha vida.
Não gosto do Mediterrâneo
transformado em cemitério.
Prefiro o fundo da alma a fundos de
investimento. Distingo liquidez dos bancos
da liquidez de teus olhos. Gosto de
uma salada Cesar numa piazza de Roma.
Não gosto de pedir Coca-Cola e ouvir:
«Pode ser Pepsi?»

 

De Mediterrâneo, Quetzal, 2016

 

“OK If It’s Pepsi?” 

to Bernardo Pinto de Almeida 

I like finding 
hieroglyphs in the footprints of seagulls. 
I don’t like when holidays land on 
a weekend. I like the frescoes of Pompei 
on really hot days. I don’t like it 
at all when Greeks add water to wine. 
I prefer nameless heroes to 
the names of great heroes. I distinguish the pain 
of losers from the total loss of pain. I like 
feeling the music return to my life. 
I don’t like the Mediterranean 
transformed into a cemetery. 
I prefer a return to the soul to a return 
on investment. I distinguish the liquidity of banks 
from the liquidity of your eyes. I like 
a Caesar salad in a piazza in Rome. 
I don’t like ordering a Coke and hearing: 
“OK if it’s Pepsi?” 

 

Traduzido por Calvin Olsen