Halyna Kruk
Ponto de bifurcação
No tempo da guerra, em Lviv (escreverão mais tarde)
havia um ambiente literário forte,
Muito provavelmente, publicavam em grupo (como aqueles modernistas de «Mytusa»)
Ou reuniam-se para leituras (o que mais poderiam os poetas fazer em tempos de guerra!)
Havia tantos por lá:
Os deslocados internamente e os externamente disfuncionais
como durante um período da primeira guerra mundial, e da segunda, a caminho da Europa,
Antes de a cortina de ferro rasgar o voluptuoso corpo nu do mundo moderno
de cima a baixo
Naquela época, tratava-se mais de Praga e Poděbrady, Varsóvia e Munique,
Mas desta vez falarão sobre Varsóvia e Lviv,
Chernivtsi e Uzhhorod, Ivano-Frankivsk e Ternopil,
onde tantos desses poetas viviam até parecia
que a cada passo alguém poderia acabar no poema de outra pessoa
Nos pesadelos, na história, nas notícias, no chão onde o colchão é partilhado,
Sob uma única manta de retalhos emprestada
(que metáfora perfeita para a coexistência humana em tempo de guerra,
Pena ter sido muito usada!),
a uma família, fraturada e incompleta...
Explica então a alguém como naqueles primeiros meses só nos cruzávamos acidentalmente
Por alguns minutos apenas em negócios, às vezes na rua, sem nos cumprimentarmos a princípio,
Surpreendidos, como se recordassemos algo irremediavelmente perdido e irrecuperável
Abraços em vez de palavras para esconder as lágrimas:
- Como estás - como estás (nem uma palavra sobre literatura) - aguenta firme - aguenta firme
Silenciosos e concentrados, como os primeiros cristãos
que testemunharam os milagres de Cristo com os próprios olhos e não faziam ideia
de como entendê-los de como contar aos outros para que acreditassem e não se rissem deles,
Como não distorcer ou confundir as coisas,
Porque nunca fica claro quais são os detalhes importantes e quais podem ser desconsiderados
Então, em cada relato, omitimos as partes sobre nós mesmos,
Como apóstolos em extremos opostos do mundo, cada um pregando a sua própria versão do evangelho
Porque qualquer fé depende de um milhão de relatos de testemunhas oculares,
em inúmeras histórias privadas daquele ponto da realidade,
onde ninguém sabe nada ainda, ou entende
o que aquele homem fez ao lado do Lázaro morto, e como o fez,
como todos viram, mas nem todos acreditaram imediatamente...
Principalmente se esta fé na vitória vier de um ponto ainda não visível
É assim que o descreverão no início dos anos 30 nos capítulos relevantes sobre literatura ucraniana
O principal é não esquecer que nada disto foi sobre literatura
Traduzido a partir do inglês por Ricardo Marques para Lisbon Revisited: dias de poesia
Bifurcation point
In wartime Lviv, (they’ll write later)
There was a strong literary milieu,
Most likely, they published as a group (like those modernists in «Mytusa»)
Or gathered for readings (because what else would poets do in wartime!)
There were so many there:
The internally-displaced and the externally-dysfunctional
Like briefly during the first world war, and the second, on their way through Europe,
Before the iron curtain tore the modern world’s voluptuous naked body
Wide open
Back then it was more about Prague and Podebrady, Warsaw and Munich,
But this time they’ll talk about Warsaw and Lviv,
Chernivtsi and Uzhhorod, Ivano-Frankivsk and Ternopil,
Where there were so many of those poets it seemed
At every step one could wind up in someone else’s poem
In nightmares, in history, in the news, on the floor where you share a mattress,
Under a single borrowed patchwork quilt
(what a perfect metaphor for human coexistence in wartime,
Too bad it’s worn out!),
For one family, fractured and incomplete...
Then explain to someone how in those first months we only crossed paths accidentally
For a few minutes just on business, sometimes on the street, not acknowledging each other at first,
Startling, as if recalling something hopelessly lost and irretrievable
Hugging instead of words to hide streaming tears:
- How are you – how are you (not a word about literature) – hang in there – hang in there
Silent and focused, like the first Christians
Who witnessed Christ’s miracles with their own eyes and had no idea
How to fathom it and how to tell others so they’d believe and wouldn’t mock them,
How not to twist or muddle things,
Because it’s never clear which are the important details and which can be disregarded
Then in each account we omit the parts about ourselves,
Like apostles on opposite ends of the world, each preaching our own version of the gospel
Because any faith depends on a million eyewitness accounts,
On countless private stories from that point in reality,
Where no one knows anything yet, or understands
What that man did beside the dead Lazarus, and how he did it,
How everyone saw, but not everyone immediately believed...
Especially if this faith in victory comes from a point not yet visible
This is how they’ll describe it in the early ‘30s in the relevant chapters on Ukrainian literature
The main thing is not to forget that none of this was about literature
De A Crash Course in Molotov Cocktails, Arrowsmith Press, 2023
Traduzido por Amelia M. Glaser e Yuliya Ilchuk
Lá e de novo de volta
Tomei tranquilizantes ao viajar para lá,
de volta aos analgésicos
não havia outros caminhos
Senti-me tão despedaçada,
Tive medo de furar a cabine do avião,
o interior do hotel desenhado de forma tão complexa,
os corpos dos interlocutores tão lindos
a guerra não combina com o resto do mundo
como a mutilação num vestido de noite:
o visual é muito pesado
a linguagem muito afiada
os detalhes muito brutais
vamos fechar os olhos da morte com as mãos, querido,
tu pode alcançá-la, aí estás mais perto
temos uma pessoa especial para as conversas difíceis
temos uma sala especial
entrada e saída separadas, aqui não, por favor
lindos corpos jovens mergulham nas águas do canal,
iluminados pelo sol, cheios de amor, de vida, risos
perfeitos, corajosos, como
cartões-postais alemães anteriores à guerra
um espírito são num corpo são
grãos cuidadosamente selecionados e sem manchas,
como já fomos, seguros de nós mesmos, cheios de amor
diante da morte eu te digo:
ama-me como se não mais houvesse
luz suficiente para nos encontrarmos novamente
ama-me até que parecer
que a morte nos esqueceu,
mas ela está a espiar, de agora em diante sempre em todos os lugares
nós sabemos isso, não podemos acabar
a guerra está a tratar do nosso futuro,
como eles dizem
como eles o veem
quando tu me ligas da guerra
os pássaros cantam
por isso o mundo ainda existe
Traduzido a partir do inglês por Ricardo Marques para Lisbon Revisited: dias de poesia
There and back again
I traveled there on tranquilizers,
back on painkillers
there were no other routes
I felt so shattered,
I feared I'd pierce the aircraft cabin,
the hotel's interior was so intricately designed,
the interlocutors' bodies so beautiful
war doesn't suit the rest of the world
like mutilation with an evening gown:
the look’s too heavy
the language too sharp
the details too brutal
let's close death's eyes with your hands, dear,
you can reach, you're closer there
we've got a special person for the hard conversations
we've got a special room
separate entrance and exit, not here, please
beautiful young bodies dive into the canal's waters,
sunlit, full of love, life, laughter
perfect, audacious, like
german pre-war postcards
a healthy spirit in a healthy body
carefully selected grains with no blemishes,
as we once were, sure of ourselves, love-filled
in the face of death i say to you:
love me as if there will never be
enough light to find each other again
love me until it seems
death's turned a blind eye,
but she's spying, from now on always everywhere
we know it, we can't finish
the war's taking care of our future,
as they say
as they see it
when you call from the war
birds are chirping
so the world still exists
De A Crash Course in Molotov Cocktails, Arrowsmith Press, 2023
Traduzido por Amelia M. Glaser e Yuliya Ilchuk,
*
nesta casa
o corpo de um poema, ainda quente,
está pendurado no prego do mundano
tocado até à sua essência
como um aviso, como uma prova
de que eu estava aqui
de que tu estavas aqui
e havia algo entre nós
irresistível como respirar
incerto como um beijo
sem importância para ninguém além de nós
Eu amo em ti a possibilidade,
que não gastámos,
a estrada que poderíamos ter percorrido,
mas não andámos,
a escolha, que não fizemos,
querendo tudo de uma vez
em vez de um pouco
de cada vez
às vezes um poema transforma-se numa casa,
que se constrói à beira de um abismo,
por pura necessidade
de superar a realidade
Traduzido a partir do inglês por Ricardo Marques para Lisbon Revisited: dias de poesia
*
in this house
the body of a poem, still warm,
hangs on the nail of the mundane
touched to its core
like a reproach, like proof,
that I was here
and you were here
and there was something between us
irresistible as breathing
uncertain as a kiss
unimportant to anyone but us
I love in you the possibility,
which we haven't used up,
the road, which we could have walked,
but didn't,
the choice, which we didn't make,
wanting it all at once
instead of a little bit
at a time
sometimes a poem turns into a house,
that you build at the edge of an abyss,
entirely out of a need
to overcome reality
De A Crash Course in Molotov Cocktails, Arrowsmith Press, 2023
Traduzido por Amelia M. Glaser e Yuliya Ilchuk,
Sobrevivência
o que nos impede de acertar contas,
o que nos dá forças para continuar nadando em águas frias numa manhã de fevereiro,
exalando uma nuvem azul de vapor, da mesma forma que fumadores inveterados expelem o fumo
o que nos faz adivinhar onde fica a costa mais próxima,
onde, mais cedo ou mais tarde, conseguiremos sair, permanecer firmes
o que nos mantém à tona, nos impede de nos afogarmos, nos empurra para fora da água
além da força de Arquimedes, do esforço de Sísifo,
além da gordura subcutânea e da vontade de nadar o máximo possível
neste profundo alarme que nos deixa sóbrios e nos dá alento,
neste desespero acre que aperta as nossas costelas,
forçando-nos a inspirar e expirar
somos o que reprimimos nas margens da consciência,
numa caótica sequência de vídeos de sonhos sobre o pior,
na confusão de sensações infantis, que não conseguimos
lembrar ou esquecer
Aqui está o que ainda não podes admitir, nem para ti mesmo:
sem falar de outros, mesmo diante da morte:
não somos movidos pela força, mas pela fraqueza
nós sempre nadamos até a costa mais distante
mas aos únicos que sabem isto não falta
força para nadar, para sair em terra firme, para olhar para trás,
para tomar por certo
que nalgum lugar no meio da água,
onde o fundo está realmente mais perto do que a costa
(porque o fundo está sempre mais próximo)
e o corpo se recusa a nadar e os pulmões a respirar,
alguém nos vai substituir
e ninguém vai notar
Traduzido a partir do inglês por Ricardo Marques para Lisbon Revisited: dias de poesia
Survival
what keeps us from settling accounts,
what gives us the strength to keep swimming through cold water on a February morning,
exhaling a blue cloud of steam, the way chain smokers expel smoke
what makes us guess where the nearest shore is,
where, sooner or later, we'll manage to get out, to stand firm
what keeps us afloat, keeps us from drowning, shoves us out of the water
besides Archimedean strength, Sisyphean effort,
besides subcutaneous fat and the desire to swim as far as possible
in this deep alarm that sobers and drives us,
in this acrid despair that tightens our rib cage,
forcing us to inhale and exhale
we are what we repress on the margins of consciousness,
in a chaotic video sequence of dreams about the worst,
in the confusion of childish sensations, which we fail
to either remember or forget
Here’s what you can’t admit yet, even to yourself,
not to mention others, even in the face of death:
we're driven not by strength, but by weakness
we always swim to the farthest shore
but the only ones who know this don't lack
strength to swim, to get out on dry land, to look back,
to take for granted
that somewhere in the middle of the water,
where the bottom’s really closer than the shore
(because the bottom’s always closest)
and the body refuses to swim, and the lungs to breathe,
someone will replace us
and no one will notice
De A Crash Course in Molotov Cocktails, Arrowsmith Press, 2023
Traduzido por Amelia M. Glaser e Yuliya Ilchuk,
Evacuação
num sonho, onde um coelho de inverno emaranha os seus rastros
um som alarmante paira no ar como o latido de um cão
a maneira como abres a porta para sair de casa
lá do alto, como se fosse de um avião... apanhas o ar frio com a boca
flutuar é o mesmo que cair? poderás
mudar a forma como as coisas são, começar de novo? viver a vida
é como caminhar por um campo cheio de neve... dá-me alento,
a incerteza deste sonho, um sentimento vago:
então quem entre nós não voltou?
Desde o posto de controle até à zona cinza-cinzenta,
até às crianças em alcovas, as mães seguram-nas junto ao peito
chamando-as ansiosamente pelo nome, como se as pegassem pela manga
mas mesmo assim alguém pode perder-se, e o grito de uma mulher
ressoa num eco contínuo
Eu vi os rostos - mais brancos que a neve... que o papel,
como alvos num campo de tiro...
à distância, inofensivos como um aparelho de barbear,
atingem-me e atingem
as crianças espalhadas pelo campo as crianças
correm, em cada um esconde-se um coelhinho assustado
e a batida de um coração...
às vezes faz calor quando te enterras na neve,
tudo depende da profundidade do monte.
este sonho é como a neve... nele tu vês
o caule pontiagudo da papoila. As pegadas caóticas do coelho
o branco. as conversas emaranhadas,
em olhares acidentais visões acidentais,
como faíscas de fogo...
mas nenhum de nós voltou desse sonho
Traduzido a partir do inglês por Ricardo Marques para Lisbon Revisited: dias de poesia
Evacuation
in a dream, where a winter rabbit tangles its tracks
an alarming sound hangs in the air like a barking dog
the way you open the door to leave the house
from high up, as if from an airplane... you catch the cold air with your mouth
is floating down the same as falling? can you
change the way things are, start over? living life
is like walking through a snow-filled field ... it urges me on,
the uncertainty of this dream, a vague feeling:
so who among us hasn't come back?
from the checkpoint to the gray-gray zone,
to the children on bundles, their mothers hold them close
anxiously calling them by name, as if holding them by the sleeve
and someone gets lost all the same, and a woman's scream
rings out in a rolling echo
I saw the faces -- whiter than snow... than paper,
like targets on a shooting range...
at a distance harmless as a safety razor,
it strikes me and strikes
the children scattered across the field the children
run, in each lurks a scared little rabbit
and the drumbeat of a heart...
sometimes it’s warm when you burrow in the snow,
it all depends how deep it's piled on top.
this dream is like snow... you look down at it
the spiky poppy-pod. the chaotic rabbit tracks
the white. the tangled conversations,
at accidental gazes accidental insights,
like flashes of fire...
but none of us came back from that dream
De A Crash Course in Molotov Cocktails, Arrowsmith Press, 2023
Traduzido por Amelia M. Glaser e Yuliya Ilchuk,