Pedro Mexia
As gavetas
Não deves abrir as gavetas
fechadas: por alguma razão as trancaram,
e teres descoberto agora
a chave é um acaso que podes ignorar.
Dentro das gavetas sabes o que encontras:
mentiras. Muitas mentiras de papel,
fotografias, objectos.
Dentro das gavetas está a imperfeição
do mundo, a inalterável imperfeição,
a mágoa com que repetidamente te desiludes.
As gavetas foram sendo preenchidas
por gente tão fraca como tu
e foram fechadas por alguém mais sábio que tu.
Há um mês ou um século, não importa.
De Duplo Império, 1999
Drawers
You should not open closed
drawers: they were locked for a reason,
having now found
the key is a happenstance you can ignore.
You know what you’ll find inside drawers:
lies. Many paper lies,
photographs, things.
Drawers are home to the world’s
imperfection, the unalterable imperfection,
the sorrow that repeatedly feeds your disillusion.
Drawers have always been packed
by people as weak as you
and locked by someone wiser than you.
A month ago, never mind a century.
Traduzido por Ana Hudson
FUNERAIS
Nos funerais encontramos a família.
Nunca fomos tão claros
como no luto
e nas memórias anedóticas
que amenizam o morto.
Que sangue é o teu
para que o meu se assemelhe?
Alguns velhos trazem flores
que já ofereceram nos casamentos
e entre eles decidem
que somos uma família,
conhecem os primos que não
conheço, lamentam a sorte
daqueles cuja sorte é conhecida,
são ainda mais graves
do que nós, e usam
diminutivos carinhosos.
O meu nome far-se-á pó
com o meu corpo, pensa
uma mulher que já é viúva,
há irmãos completamente mudos
e as crianças jogam à cabra-cega.
Seguimos em cortejo
compondo as gravatas,
o vento não percebe que morreu gente.
Dez pessoas acompanham o padre,
os outros já não se lembram
das orações,
dez pessoas pensam
no que têm pela frente,
os outros acompanham o caixão.
O coveiro mais novo
dentro de pouco tempo
enterrará o mais velho.
De Em Memória, Gótica, 2000
Funerals
We meet the family at funerals.
We’re never as transparent
as when we mourn
and tell measured anecdotes
recalling the deceased.
What blood runs here
that mine may resemble?
Some of the old people bring the flowers
they already gave at weddings
and among them they decide
we are a family,
they know the cousins I don’t
know, regret the fate
of those whose story is known,
they are even graver
than us, and use
endearing terms.
My name will turn to dust
with my body, a widowed
woman is thinking,
there are siblings who are completely silent
and children who play blindman’s buff.
We follow the cortege
straightening our ties,
the wind can’t tell that someone has died.
Ten people keep up with the priest,
the others can no longer remember
the prayers,
ten people think about
what they are facing,
the others follow the coffin.
Soon enough
the younger will bury
the older digger.
Traduzido por Ana Hudson.
Conto de Verão
A meio da tarde mas como se fosse fim
o papagaio em ziguezague puxado por cordas.
À varanda da infância a que voltei
acompanho os primos namorados irmãos
que correm na areia guiados pelo que
verticalmente decerto lhes parece o céu
mas visto daqui é tão-só o alto,
a vida natural ao vento violenta a vida
deles, dançam como âncora ou contrapeso
ao artefacto vermelho que lhes escapa
embora o tenham bem preso, sopra onde quer,
a maresia, constante e quase mansa
na folhagem, na bandeira, nas memórias.
O rapaz tem firme nas mãos
o terrível brinquedo, indo ao chão
como os pioneiros dos aeroplanos,
feliz na sua ciência, intrépido, determinado
na expressão que porém não alcanço,
tão miúdo que cai e se levanta
como se nada fosse, enquanto ela fica
deitada sempre que tropeça, ou quando
ele lhe dá as rédeas por momentos.
Volteiam do relógio quase até ao farol,
com uma mortal seriedade e alegria
que não compreendo, têm como fogo preso
o seu caprichoso foguete, às vezes
o papagaio tem mais força do que dois
adolescentes, e cumpre o seu papel,
imprevisível mas complacente, indomável
mas seguro, subindo em volutas,
descendo a pique, vigia de uma praia
quase inóspita a esta luz suave,
Joguete sem tempo
unindo quem só tem futuro ainda
e o passado que os observa e se faz
assim remoto, armadilhado,
entre falsas recordações, vagos arquétipos,
histórias hipotéticas, canções tristes.
Ficou o mundo em silêncio, veraneantes,
automóveis, tudo o que acontece é
aquela coreografia que eles fazem
para ninguém, nem um para o outro,
o rapaz tão calmo mesmo quando perde
por instantes um combate, a menina
que diz frases que não ouço,
esfuziante, ignorante, seminua,
e quando fecho a janela
ela vê o papagaio cair e abre os braços.
De Uma vez que tudo se perdeu, Tinta-da-China, 2018
Summer Tale
Middle of the afternoon but seeming like the end
the kite zigzagging pulled by strings.
To the childhood porch I return
along with cousins like sibling lovers
running over the sand guided by what
surely to them seemed vertically like heaven
but seen from here is only the sky,
the natural life in the wind assaults their
lives as they dance around, like anchor or counterweight
to the red artefact that flees from them
even though they hold it tightly, it blows where it wants,
the sea air, constant and almost mild
in the foliage, flapping the flag, in memories.
The boy has it firmly in hand
the terrible toy, diving groundward,
like the early pioneers of airplanes,
happy with its technique, intrepid, determined
in expression, which I can hardly describe,
so small that it falls and rises up
as if nothing had happened, while she lies there
on the ground every time she trips, or when
he gives her the reins for a few moments.
They return from the clock almost to the lighthouse,
with a mortal seriousness and happiness
that I don’t understand, like trapped fire
they’ve got their capricious rocket, sometimes
the kite is stronger than two
teenagers, and plays its part,
unpredictable but complacent, indomitable
but sure, rising in circles,
diving steeply, watching over a beach
almost inhospitable in this soft light,
timeless plaything
uniting those who only have a future
and the past that observes them and so
turns remote, trapped,
between false memoires, vague archetypes,
hypothetical stories, sad songs.
The world remained in silence, vacationers,
automobiles, everything that happens is
that dance they choreograph
for nobody, not even for each other,
the boy so calm even when he loses
the struggle for some moments, the girl
who says things that I don’t hear,
effusive, ignorant, seminude,
and when I close the window
she sees the kite fall and opens her arms.
Traduzido por Martin Earl para o Lisbon Revisited: dias de poesia.
A Curva do Mónaco
Príncipes, à noite, celebram o quê?
Ou príncipes paralelos à noite, como o rio à cidade,
amparado por dunas, rochedos, fortes, vivendas.
Pequeno oceano estático para rapazes de Lisboa.
Corações ao alto seguíamos, intocáveis, fluviais,
noctívagos, plácidos de algumas certezas
e ainda mais ambições, grandiosos ou pedestres
dependendo de fazermos ou não uma trégua irónica.
Avançamos contra as luzes em sentido contrário,
faróis destinados à capital, quem sabe
com bustos de Napoleão no banco de trás.
Tínhamos queimado a árvore da fraternidade,
a árvore abstracta, regimental, compulsória,
havia de ser diferente quando fosse a nossa vez,
não obrigaríamos ninguém a nada.
Íamos em direcção conhecida mas desconhecíamos
onde queríamos chegar, ignorávamos
os obstáculos, a tua confiança ainda não
implacável, a minha cobardia irrelevante, gentil.
Em breve a crua luz do dia talvez impeça
os disfarces: um príncipe e um monstro equivalem-se,
um jovem é um moribundo levado em ombros.
Mas a noite com seus artifícios durou um fogacho ainda.
Há um tempo para Abel e outro para Caim,
a questão dirigia-se ao futuro, como o automóvel nocturno
que se lançava à Linha e à amizade,
essa a que certamente fizemos um brinde sem malícia.
E na paz tempestuosa dos vinte anos
avisaste que à nossa frente a estrada fazia
uma guinada acidentada, fatal,
a que um príncipe trocista chamou, comovido,
a curva do Mónaco.
De Uma vez que tudo se perdeu, Tinta-da-China, 2018
The Monaco Curve
Princes, by night, celebrate what?
Or princes parallel to the night, like the river to the city,
protected by dunes, cliffs, forts, villas.
For Lisbon boys a small static ocean.
Our hearts steeled we move out, untouchable, riverine,
nocturnal, placid with so many certainties
and still more ambiguities, grandiose or on foot
depending on whether or not an ironic truce had been declared.
We go headlong into the lights in the wrong direction,
Headlights on their way to the capital, who knows
with busts of Napoleon in the back seat.
We’d burned the tree of fraternity,
the abstract tree, regimental, compulsory,
it had to be different once it was our turn,
we asked nothing of no one.
We went in the direction of the known without knowing
were we wanted to go, we ignored
the obstacles, your conviction still not
implacable, my cowardice irrelevant, overly refined.
Soon the naked light of day would perhaps hamper
these poses: a prince and a monster are one and the same,
a boy is a dead man shouldered and carried out.
But the night with its artifices still hadn’t flickered out.
There is one time for Abel and another for Cain,
the question was addressed to the future, like a nocturnal automobile
that shot towards the finish line and friendship,
which we toasted without malice.
And in the tempestuous peace of your twenties
you warned me that the road ahead had a
sudden dead man’s bend
which a mocking prince called with great emotion
the Monaco curve.
Traduzido por Martin Earl para o Lisbon Revisited: dias de poesia.
Michael Furey
Em que pensas? Acho que sei
em que pensas.
Exausta, distraída, abstracta,
acho que sei em que pensas.
Entre lágrimas dizes que não.
Que não é nada.
Apenas um rapaz de Galway
e que em Galway cantava.
Acho que sei em que pensas.
Amas esse rapaz.
Um rapaz de grandes olhos escuros,
dizes, ainda te lembras
como se fosse agora.
Tão grandes tão escuros.
Acho que sei em que pensas.
Vais ter com esse rapaz.
Junto da vidraça dizes não vou,
o rapaz mal chegado aos dezassete
morreu. E tudo é de repente terrível
como o candeeiro público apagado.
Acho que sei em que pensas.
Faz falta esse rapaz.
Estava bem com ele, dizes,
tão gentil, tão bela voz,
passeávamos, dizes,
como se faz no campo.
Acho que sei em que pensas.
Em que pensas?
Numa noite de chuva, de tanta chuva,
ele atirava pedrinhas à minha janela.
E não se ia embora.
E não se foi embora.
Tão dócil doente encharcado.
«Acho que morreu por mim.»
Acho que sei em que pensas.
Chove muito, lá fora.
Traduzido por Martin Earl para Lisbon Revisited: dias de poesia.