Ana Martins Marques – Brasil
Nasceu em Belo Horizonte, Brasil, em 1977. É formada em Letras e Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais. Publicou os livros de poemas A vida submarina, Da arte das armadilhas, O livro das semelhanças, O livro dos jardins e Risque esta palavra, entre outros. Recebeu vários prémios, entre eles o Prémio Cidade de Belo Horizonte, o Prémio Literário da Fundação Biblioteca Nacional e o 3º lugar do Prémio Oceanos (2016). Uma antologia de poemas seus foi publicada em Portugal pela editora Douda Correria, com o título Linha de rebentação (2019).
Um café com a Medusa
Ou será então que você acredita, teria ela, escreve Beyle, ainda acrescentado, que Petrarca foi infeliz só porque nunca pôde tomar um café?
W. G. Sebald, Vertigem
Tudo o que com os olhos toco
ela diz
transformo em pedra
mas tudo é já
desde sempre pedra
pó futuro
seus pais eram filhos do mar e da terra
cetáceos de um mundo arcaico
informe ainda
mas ela é mortal
destinada, como nós, ao pó
Ovídio diz ter sido justo e merecido
o castigo que lhe impingiu Atenas
transformando seus cabelos em serpentes
porque ela se deitara com Poseidon
são desde sempre as mulheres, ela diz,
condenadas pelo que fazem no leito
desde sempre amputadas
de suas terríveis cabeças
mas hoje estamos velhas
ela e eu
cansadas de refletir o tempo
como um escudo
só queremos tomar nosso café
cada serpente que lhe adorna a cabeça
fala em uma língua
e a traduz
mas na realidade
falamos pouco
enquanto olhamos o porto
e ela ajeita as asas
na cadeira
cúmplices
ela e eu
(embora eu evite
confesso
olhá-la nos olhos)
tomamos nosso café quase
em silêncio
ela diz que agora sonha apenas com o mar
que seus cabelos são algas e não serpentes
e que dançam lentamente no fundo de um oceano
cheio de monstros, como são os oceanos,
lagostas enormes e águas-vivas
e outras incongruências marinhas
corais e conchas que são
como estojos
e baleias que vivem até duzentos anos
o que para ela é nada, alguns segundos
como de fato é
e rimos as duas
que duas velhas sonhem ainda
e sempre o sexo
é talvez o que há no desejo de mais cruel
quando nele há tanto de cruel:
que ele dure, continue
e às vezes seja só desejo
do desejo
e seja móvel e mesmo
como o mar
aos que não têm mais pátria
seja porque se exilaram
seja porque o país se exilou de nós
e toma a forma dos nossos pesadelos
seja porque na realidade não há países
mas extensões variáveis de terra
que as nuvens sem passaporte
atravessam
resta só a memória do mar
ela diz
batendo inutilmente
o mar e o café
ela diz
e, a cada qual,
suas serpentes
Poema retirado de Risque esta palavra, Companhia das Letras (2021)
Fotografia: © Mauro Figa