Hélia Correia
23
A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.
De A Terceira Miséria, Relógio d'Água, 2012
23
The third misery is this one, today’s.
That of someone who no longer listens or asks.
That of someone who doesn’t remember. And, unlike
Proud Pericles, becomes
One among all the others, one among those who surrender,
Who will merge like one liquid
Into another larger liquid, all shape lost,
The statue crumbled into dust.
Traduzido por Margaret Jull Costa para o Lisbon Revisited: dias de poesia
33
De que armas disporemos, senão destas
que estão dentro do corpo: o pensamento,
a ideia de polis, resgatada
de um grande abuso, uma noção de casa
e de hospitalidade e de barulho
atrás do qual vem o poema, atrás
do qual virá a colecção dos feitos
e defeitos humanos, um início.
De A Terceira Miséria, Relógio d'Água, 2012
33
What weapons will we have at our disposal,
If not these inside our body: the ability to think,
The idea of polis, rescued
From a great wrong, a notion of home
And hospitality and noise
Behind which comes the poem, behind
Which will come the collection of human deeds
And misdeeds, a beginning.
Traduzido por Margaret Jull Costa para o Lisbon Revisited: dias de poesia
Poiêtikê
Para Maria de Sousa e Anabela
I
Vindo o momento, tudo aquilo que separou
ciência e poesia deixará
de existir sobre a terra.
E o mistério terá o seu quinhão
entre as coisas aceites, entre as coisas
que, parecendo sombras, mais não são
do que a graciosidade que se esquiva
àqueles que tudo querem devassar.
O maior dos mistérios é a música, disse ela.
E eu concordei.
Mas penso, às vezes, na respiração.
Por muito que a ciência nos explique
o mecanismo do pulmão, o desempenho
do oxigénio, como se refere
isto ao nosso sufoco, ao nosso anseio,
ao convulsivo sorvo da criança
que perde a protecção, que a própria mãe
expulse de si, e será sempre alguém
precariamente vivo, alguém que deve,
segundo após segundo, abrir o peito
para que nele entre o invisível e dele saia
imediatamente o invisível?
Há, dir-se-ia, um ritmo musical
como o que enche e esvazia um instrumento,
mas estamos em presença do afogado
e do estrangulado por garrote,
em presença até mesmo do que tem
perfume nos lençóis e o conforto
de uma grande fortuna e, ainda assim,
perde a magnificência, pois não sabe,
como soube, ao ser expulso pela mãe,
o movimento da respiração.
E toda a gloria do pensante é breve
e admirável.
É o repicar
de um sino na manhã:
não existente
e absolutamente poderoso.
São os feitos dos homens, é um sino,
ciência do metal, poema em voo,
feitos dos homens que, como ele,
respiram.
E ela quer saber exactamente onde está o poema,
quer tocar
no nervo do poema, sem que exista
frieza ou impiedade,
sem que exista
golpe de bisturi.
Porque é um toque de delicadeza,
a maternal leveza que há nos dedos
de quem levanta uma raiz, tremendo
com tudo o que ali há de irreparável,
de precioso, de finito, como o verso,
com tudo o que ali há de
desumano,
enquanto algo de fino,
de espantoso na sua vibração,
atinge o peito
e deixa as criaturas que nós somos
sob o encantamento do que ignoram.
De Acidentes, Relógio d'Água, 2020
Poiêtikê
For Maria de Sousa and Anabela
I
When the moment comes, everything that separated
science and poetry will cease
to exist upon the earth.
And mystery will take its place
among other accepted things, among those things
that appear to be shadows, but are
only the graciousness that eludes
those who want to reveal everything.
The greatest mystery is music, she said.
And I agreed.
But sometimes I think about breathing.
Science can explain all it likes about
the mechanism of the lungs, and
how oxygen works, but what has this to do
with our struggle to breathe, our yearning,
the convulsive gasping of the child
who suddenly loses all protection, expelled
by his own mother, and who will always be someone
precariously alive, someone who must,
second after second, open his breast
to allow the invisible to enter only for
the invisible immediately to leave?
There is, some would say, a musical rhythm
like the one that fills and empties an instrument,
but we are in the presence of the drowned man,
of the hanged man,
in the presence even of someone who enjoys
perfumed sheets and the comfort
of a large fortune and, even so,
loses all that magnificence, because he doesn’t know,
as he once did, when expelled by his mother,
the rhythm of the breath.
And all the glory of the person thinking is brief
and admirable.
It is the ringing
of a bell in the morning:
non-existent
and absolutely powerful.
These are the deeds of men, a bell,
the science of metal, a poem in flight,
the deeds of men, who, like him,
breathe.
And she wants to know exactly where the poem is,
to touch
the nerve of the poem, with not a hint of
coldness or cruelty,
with not a hint
of the scalpel.
Because it is a delicate touch,
the maternal lightness that exists in the fingers
of someone picking up a root, trembling
with all that it contains of the irreparable,
the precious, the finite, like the poem,
with all that it contains of
the inhuman,
while something fine, something
astonishing in the way it vibrates,
reaches the breast
and leaves the children we are
under the spell of what they do not know.
Traduzido por Margaret Jull Costa para o Lisbon Revisited: dias de poesia
Otherwise
Para a Lucinda Canelas
“Tanzt, tanzt, sonst sind wir verloren”
(Dance, dance, otherwise we’re lost)
Pina Bausch
I
Se a dança nos salvasse, mesmo assim
dançaríamos mal e deus algum
receberia o nosso movimento.
Pois nem se a terra nos prendesse pelas mãos
como se prende um filho, de maneira
a fazê-lo voar em rotação,
com um pouco de perigo, o que subtrai
ainda mais o corpo à gravidade,
confiávamos nela.
Já perdemos
a ligação?
Podia algum de nós,
os politicamente corrigidos,
tornar-se outra vez fera,
estar na fera,
cravar na jugular da fera os dentes
em corpo-a-corpo, ventas contra ventas,
cheiro dentro de cheiro, exactamente
como na fúria da reprodução, apenas
indo mais longe nela,
devorando?
A dança:
o pé batia contra o solo
e, de algum modo, enraizava ali
e, de algum outro modo, se elevava
no ar sonoro, tendo em comum
isso com as aves,
como dizem que Nijinksy
tinha delas a arcada plantar.
A pele dos animais esventrados, isso
que, de sensíveis, não podemos
conceber,
colava-se nos ombros
das mulheres, colava-se a poder
de sangue seco,
parecendo, com elas, respirar.
Sacudindo a cabeça para trás,
sacudindo a cabeça, estranha coisa,
perdendo as bailarinas
o equilíbrio
que fazia o orgulho das donzelas.
Perdendo o equilíbrio indesejável.
De Acidentes, Relógio d'Água, 2020
Otherwise
For Lucinda Canelas
“Tanzt, tanzt, sonst sind wir verloren.”
(Dance, dance, otherwise we’re lost)
Pina Bausch
I
If dancing could save us, we would still
dance badly and no god
would welcome our movements.
Because even if the earth were to grasp our hands,
as one would with a child, and swing
us round and round,
a slightly dangerous manoeuvre, further detaching
the body from gravity,
not even then would we trust it.
Have we already lost
that connection?
Could one of us,
the politically corrected,
become once more a beast,
to be inside the beast,
and sink our teeth into the jugular of the beast
body to body, nose to nose,
smell to smell, exactly as happens
in the fury of the reproductive act, although
going still farther,
and devouring the other?
The dance:
the foot would beat on the ground
and, in a way, take root there
and, in another way, rise up
into the sonorous air,
something it shares with the birds,
just as they say that Nijinsky
had a bird-like foot.
The skin of disembowelled animals, something
we sensitive souls cannot
imagine,
would be glued to women’s
shoulders, glued there if you like
with the dried blood,
and seeming, like them, to breathe.
Throwing their head back,
Throwing back the head, strange thing,
the ballerinas losing
the balance
on which the young maidens so prided themselves.
Losing that undesirable balance.
Traduzido por Margaret Jull Costa para o Lisbon Revisited: dias de poesia
Quarto em Edimburgo
Para Jaime
Eu certamente acabaria por arder
se ficasse mais tempo enovelada
no banco da janela,
certamente
os meus limites individuais
acabariam por esbater-se,
como é justo acontecer no amor
e em nada mais
do vulgarmente humano.
Como no amor, de facto,
algo de bruto e de
invasivo, algo que
está longe de dar as boas vindas.
Parece mas não é
uma cidade.
Parecemos mas não somos
os seus hóspedes.
Pode ouvir-se o trabalho
das aranhas
como não se ouve em mais
lugar algum,
e, no entanto, não nos prevenimos,
viciados como estamos,
embalados
pelo desfile da noite,
pelas máscaras da noite, tudo o que
dança com os turistas rua acima,
fingindo explicar tudo, simulando
o gosto da catástrofe
ali mesmo
onde a velha catástrofe perdura.
É realmente necessário um esforço
que rebente as cadeias
que nos traga
para a superfície da respiração,
é necessário que juntemos todos
os pedaços do corpo e,
como no amor,
nos arranquemos,
a muito custo,
dos lugares do perigo,
a minutos de ardemos,
a minutos
de o turno da manhã
levar as cinzas.
De Acidentes, Relógio d'Água, 2020
Room in Edinburgh
For Jaime
I would certainly burst into flames
if I were to sit any longer curled up
on the window seat,
my individual boundaries
would certainly disappear,
as one would expect to happen in love
and in nothing else
of the vulgarly human.
Yes, just as in love,
something brutal and
invasive, something
far from offering a warm welcome.
It seems to be but isn’t
a city.
We seem to be but aren’t
its guests.
You can hear the spiders
working away
as you never do
anywhere else,
and, yet, we pay no heed,
accustomed as we are,
lulled by the parade of the night,
by the masks of the night, by everything that
leads the tourists in a dance up the street,
pretending to explain everything, feigning
a liking for the catastrophe in the very place
where the old catastrophe still lingers on.
It really does take an effort
to break the chains
that haul us up
to the surface to breathe,
we have to bring together
every part of our body and,
as in love,
tear ourselves away,
with great difficulty,
from dangerous places,
minutes away from bursting into flames,
minutes away
from the morning shift arriving
to carry off the ashes.
Traduzido por Margaret Jull Costa para o Lisbon Revisited: dias de poesia